photo credit: Hiura Fernandes
Um texto confuso destes que a gente escreve depois de uma noite de insónia... destes que a gente escreve pra tentar começar a semana (ou o mês) de forma mais leve, com promessas de ano-novo e com o desejo de que as palavras movam o ar, deixando cheiro de lavada pela casa…
Há dias tenho pesadelos pavorosos, acordo com o lençol ensopado de suor e medo... medo da polícia, da rua, do desemprego, da fome... Medo tem sido uma temática recorrente... A falta-de-ar esvazia meu peito, acelera o coração, parece que vou explodir... Tenho uma receita de Sertralina que não me ajuda a respirar, tenho mãos e pés ressecados pelo Dolutegravir que me retiraram a delícia (e urgência) do toque... tocar no rosto do outro! Tocar o meu próprio rosto!
Estou me esquecendo da sensação gostosa que é sentir o calor do outro...
Não tenho saído pouco de casa…
Tenho pensado na minha infância e na minha mãe, e no lugar histórico de nós mulheres negras, que é esse de "cuidar, educar e cozinhar..." impedidas do toque muito antes do dolutegravir... mas tenho falado pouco sobre isso, o momento exigia mais... Falar sobre essa dor de cabeça, sobre esse zumbido no ouvido, esse vazio no estômago (que não sei se é a ausência de almoço ou de amor)... Falar sobre nós mesmos em tempos temerosos e pandêmicos parece ser uma atitude tão mesquinha…
Ontem chamei uma irmã para balançar a minha rede, e tomar um chá de camomila antes de dormir... mas isso não nos trouxe o sono...
Ontem falei daquele aborto... do feto caído no chão do banheiro, junto com sangue e azt e desespero... e dos tempos em que o pai da criança estava preso e do quanto era difícil visita-lo na cadeia... e falamos daquele dia em que descobrimos o HIV em nossas vidas, e que ironicamente ele nos uniu às melhores pessoas...
Falamos sobre o quanto cansa esse tratamento cheio de efeito colateral e social...
Às vezes a gente só queria transar... sem precisar ser pedagoga de macho ou agente-de-prevenção-não-remunerada...
Falamos também daquele estupro que ninguém sabe... daqueles dias que tomávamos dipirona pra dormir pois não tínhamos o que comer... Sabe a fome? a fome é tão feia quanto a AIDS... a fome fede e mata igual a AIDS...
A gente lembrou que a branca-faculdade-elitista era a única estratégia de sobrevivência que poderíamos traçar, pois já havíamos tentado o tráfico e não temos o menor talento pra isso... já segurou um Revólver na mão? o cano quente, o suor gelado... "Vida Loka cabulosa"... A gente é dessa galera que não puxa o "béque/maconha" para atingir o nirvana, tão pouco pra aplaudir o sol... é pra silenciar a sirene constante que soa na cabeça... avisando que vai dar ruim... a vida sempre chega nesse ponto: vai dar ruim!
E a gente entrou para essa vidinha qualquer-coisa de universitário bolsista...
a gente chegou a se chamar de "privilegiadas", mesmo sabendo que não é privilégio algum estar ha 500 anos atrasadas... mas a gente se apropriou bem do discurso deles, a gente estudou os cosmos, os signos, a tabela periódica, foucault, freud, Hanna Arendt... e quando a branquitude ia dormir os sonos dos injustos, a gente ia ler Malcom X, Marcus Garvey... aquela velha história de sermos duas vezes melhores…
A gente concretou o coração, a gente se deixou em segundo plano... a gente adoeceu... a gente foi morrendo, dia após dia... mas o punho permanecia levantado, a cabeça erguida, o textão redigido... não tínhamos tempo para morrer ... e não pq havíamos prometido não morrer... era pq não tínhamos outra opção... achávamos que só assim construiríamos possibilidades de existência que fariam sentido e vidas que poderiam ser realmente vividas...
Já não tenho sido ingênua como antes...
E por isso esse texto é um convite ao egoísmo!
Quando tiver pesado... deixe no caminho! Quando estiver cansada... pare! Quando te fizer mais sofrimento do que sentido... não vá! Quando o coletivo não respeitar seu individual... não componha! Onde não puderes ser... não te demores! Onde não houver amor... talvez não tenha o porque se desgastar com sua luta!
Às vezes a gente precisa de um chá... e um gato dormindo tranquilo em uma caixa de papelão qualquer... Só isso! Porque é tão difícil?
O Ódio tem nos tapado o ouvido e fechado os olhos... quando a gente menos esperava nos víamos rodeados de nossa arrogância reproduzindo as mesmas violência que nos mata... e a frase de para choque de caminhão faz mais sentido do que os cinco anos de análise "Não te torne aquilo que te feriu!"
Mas como a gente chegou até aqui? quem esteve com a gente lá na época dos barraco de pau? quem nos conduziu pelo deserto e nos guardou na Babilônia?
O que eu sei é que estivemos tempo de mais cuidando dos outros... arrumando a casa, e colhendo as verduras do chão do ceasa para garantir ou o almoço ou a janta... estivemos tempo demais tentando ouvir todos os lados da história e contextualizando as ações... E de tanto tempo... o tempo foi perdido... quando a gente não olha as nossa próprias feridas é de se esperar que mais dia ou menos dia a gente vai ferir alguém no meio do caminho…
é preciso assumir os lugares de violência que ocupamos…. e é igualmente preciso assumir o cuidado de nós mesmos.
Hoje... a gente vai olhar o nosso reflexo na vitrine das ruas e vamos dizer em voz alta que a gente é incrivel! que chegar até aqui não tem sido tarefa fácil e que ainda assim chegamos... não sei exatamente onde chegamos.... mas chegamos vivas! Vamos comemorar cada conquista, e celebrar cada vitória... (mesmo a vitória de levantar da cama)...
Estamos vivas!
e lindas para o ódio do estado…
Quando puder, descanse... quando precisar, tome um banho gelado... quando abrir o sol, abra a janela... Quando quiser... dance! Sempre que preciso... faça um auto-cafuné... Fale sobre suas dores, sobre o que te fere, sobre o que incomoda... Não guarde o que mais tarde só vai virar câncer…
Quando encontrar alguém que ame diga a ela o quanto nossa existência é importante é "Preciso dizer que te amo" ! diga a você mesma o quanto a sua própria existência é importante... Separe um momento só seu... converse sobre seus segredos mais bem guardados.. chore... chore alto... chore forte... coloque tudo pra fora... chama azamiga pra lavar roupa suja...
Hidrate o cabelo… passe aquele batom rosa ou preto...
CD4 não vem só do potinho de remédio... (longe de mim levantar uma bandeira sobre o uso ou não de remédios)....
é preciso nos reencontrarmos com o amor-próprio que nos foi roubado... lá atrás, quando nos sequestraram em África, quando assassinaram nossas irmãs indígenas... quando mentiram que não éramos capazes de amar e a gente acreditou.. e o que sobrou do pouquinho de amor que encontramos lá no fundo do nosso peito, a gente entregou pro outro...
Hoje não...
Não mais...
Ainda bem que não estamos sozinhas...
ainda bem que podemos desabar...
a gente tem sido forte o tempo inteiro... é preciso nos permitir a fraqueza...
Que a vida nos seja leve!
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